sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O mito aquático


A influência do mito cosmogônico aquático nos relatos da Criação do Mundo de Gênesis: apontamentos sobre a visão cosmológica dos antigos hebreus




Astóteles, em seu livro "Metafísica", faz alusão a crença de Tales de Mileto, da seguinte forma: "Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser água [o princípio] (é por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre água)....". 

Simplício, em seu livro "Física", diz a mesma coisa sobre Tales, de acordo com o livro citado:
"[...] pois supuseram que a água é o princípio de tudo e afirmaram que a terra está deitada sobre ela. Os que supõem um só elemento afirmam-no ilimitado em extensão, como Tales diz da água".

Desses textos, depreendem-se duas idéias defendidas por Tales de Mileto, que encontram eco nas Mitologias do Oriente Próximo:

1) Os mares não foram criados; já existiam desde sempre. Essa crença se encontra refletida em vários textos mesopotâmicos, como "A Descida de Ereshkigal", que fala sobre as "Águas de Mamu", que existiam antes mesmo do universo ter sido criado; 

2) Que a terra, quando criada, foi criada sobre os mares, ou seja, em cima das águas. Essa crença se encontra nos textos babilônicos cujo título é "Encantação para o estabelecimento da casa de um deus", que traz o seguinte relato mitológico: 

"Marduk montou uma jangada na superfície da água, formou a terra e a colocou na jangada".
O próprio poema babilônico da criação, Enuma Elish, versa sobre o "caos" aquático, Tiamat, que representava o oceano primervo. 

É por isso que os estudiosos notaram uma correspondência muito mais profunda do que lingüística na palavra hebraica "TEHOM", usada em Gensis 1.2 para se referir a "abismo", que denota o caos do oceano primervo.

O fato é que a Bíblia reflete esses mesmos pensamentos pré-científicos:

1) O Genesis afirma que "no principio Deus criou os céus e a terra". No entanto, não afirma que ele criou o mar. Sobre as águas, apenas diz que "o Espírito pairava sobre as faces das águas". 

Genesis 1.6 pressupõe a existência de um "Universo Aquático", afirmando que o "firmamento" (o céu) serviu de separação para as águas. 

Isso é notório, porque textos judaicos como O Livro de Enoch, o Testamento dos Doze Patriarcas, etc., afirmavam que havia um "Oceano Celestial", e que o Céu foi feito pra não deixá-lo inundar a terra. Foi daí que veio toda a água do Dilúvio, quando Deus "abriu as janelas do céu". 

Se para nós, o espaço sideral é um conjunto de poeira estelar e vácuo, para os antigos hebreus era um imenso oceano sem fim. Logo abaixo do firmamento, o sol e as estrelas "deslizavam". 

É dentro desse quadro que aparece a "porção seca", a terra. 

2) A Bíblia endossa a idéia de que "a terra está estendida sobre os mares". Em Salmos 24,2 diz: "Fundou a terra sobre os mares, e sobre as correntes a estabeleceu". 

A palavra hebraica para "correntes" é "NAHAR", que faz referência as correntes marinhas, ou rios.
A palavra terra usada aqui é TEBEL, que significa "mundo em sua totalidade". Também é usada em 2Sm 2.8 no caso das pilastras que sustentam (e suspendem) a terra sobre (acima do) "nada". 

Salmos 136.6 diz a mesma coisa, quando afirma que: "Aquele que estendeu a terra sobre as águas". 

No entanto, de fato, sabemos que o planeta terra não está "estendido sobre os mares", pois a terra não é uma "ilha flutiante" no formato de "disco" (como afirma Isaias 40.22: "Deus está assentado sobre o disco terrestre"). 

Algumas traduções bíblicas da passagem de Isaias 40.22 trazem: "Redondeza da terra", dando a entender que o faz alusão ao formato esférico da terra. No entanto, essa tradição está equivocada. 

A palavra hebraica usada em Isaias 40.22 para "redondeza" é "HUG". Esta é usada em Provérbios 8.27 se relacionando com "traçar": "Quando 'TRAÇAVA' um circulo sobre a face do abismo". Traçar um circulo sobre a face do abismo? O que isso significa? 

Significa que, se alguém olhar 360° ao seu redor para o horizonte, terá a impressão de que a terra possui um formato de pizza. Os antigos hebreus pensavam que o oceano ("abismo") era circular, e por isso usaram essa palavra. 

"HUG" faz referência a delineamentos bidimensionais. É por isso que Isaias 40.22 usa essa palavra: "Deus está assentado sobre o 'DISCO TERRESTRE'" (tradução correta). 

Note em Provérbios 8.27 que se usa a palabra hebraica "HAQAQ" (traçar) antes de "HUG" (circulo). Traçamento de círculos só ocorrem em figuras bidimensionais. 

O interessante é que todos os povos da antiguidade, principalmente logo depois da Era do Ferro, acreditavam que a terra tinha o formado de disco. 

O texto de Jó 26.7 traz a seguinte passagem: "Ele estende o norte sobre o vazio, Suspende a terra sobre o nada". 

A palavra hebraica usada em Jó 26:7 é "Talah". De acordo com o Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, esta palavra significa "pendurar, enforcar". Is. 22.24 a usa para "estaca". Ester 7.9 a usa para "empalar". Esta palavra também é usada em Dt 21.22 para "pendurar" o "maldito" no madeiro. 
"Suspender", no contexto da palavra hebraica talah, é o mesmo que "levantar", "pendurar", "elevar", que implica "tirar do chão", "elevar", "segurar em cima", "não deixar cair". 

Logo, se a biblia afirma que a terra está "suspensa" sobre o nada, é porque ela pode cair sobre esse nada. Todas as culturas tinham essa concepção de que a natureza do universo se consistia nos conceitos de cima e baixo. A terra está suspensa "acima do nada", é o que o texto de Jó 26.7 quer dizer. Ela está elevada a altura. 


Ou seja, segundo Jó 26.7, a terra está "pendurara sobre o Nada". A visão mitológica do universo em Jó 26.7 se adequa com o termo usado "Norte". Norte em hebraico nesse texto é "TSAPON". 

De acordo com o Dicionário Internacional de teologia do Velho testamento: "Na mitologia cananéia o norte era considerado o lugar de reunião dos deuses, Os deuses reuniam-se no monte tsapân" (p. 1302). Desse modo, a palavra hebraica para "norte" no texto de Jó faz referência ao monte mítico Saponu. 

Desse modo, pode-se constatar que a cosmologia bíblia se adequa perfeitamente a cosmologia pagã, que fazia parte de seu contexto histórico.

Outros comentaristas colocam "tsapon" como uma estrela. Logo, o texto só faz sentido em um contexto mitologico. Pois que sentido há em "estender o Norte sobre o vazio?". 

Os antigos egípcios, mesopotâicos e hindus também acreditavam que a terra estava "suspensa" sobre o "nada". Tanto egípcios como mesopotamicos acreditavam que "pilares" suspendiam a terra sobre o nada. Já os hindus afirmavam que a tartaruga que levava a terra nas costas nadava sobre o "nada". A Bíblia cita esses "pilares" em 1Samuel 2.8: "porque do SENHOR são os alicerces da terra, e assentou sobre eles o mundo".

A palavra terra é TEBEL, que significa "mundo em sua totalidade". Também é usada em 1Sm 2.8 no caso das pilastras que sustentam (e suspendem) a terra sobre o nada. 

Referências

ALMEIDA, João Ferreira de (trad.). Bíblia: versão revista e atualizada. 2. ed. Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 

BRIEND, J. (org.) A Criação e o Dilúvio Segundo os Textos do Oriente Médio Antigo. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1990.
CAVALCANTE DE SOUSA, José. Os Pré-Socráticos. São Paulo: Ed. Abril, 1973 (Coleção Os Pensadores vol. I ). 

HARRIS, R. Laird, ARCHER Jr., Gleason L. e WALTKE, Bruce K., Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998.

Autor: Francisco Chagas Vieira Lima Júnior