sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Incoerência geográfica: Lucas e a casa de Pedro


Lucas afirma que, quando Maria Madalena e as outras mulheres voltam do sepulcro para contar aos demais que o mesmo estava vazio, Pedro  

“levantou-se e correu ao sepulcro. Abaixando-se, viu as faixas de linho e nada mais; afastou-se e voltou para sua casa [πρὸς ἑαυτὸν], admirado com o que acontecera”. (Lc 24.12).

A palavra grega ἑαυτοῦ [heautou] é usada para se referir a casa da pessoa ativa em uma narrativa, como Lucas atesta em 11.21, ao usar essa palavra para denotar “palácio”, e Paulo em 1Co 16.2, ao denotar “casa”. A obra grega “Memórias” 3,13.3, de Xenofonte também usa a mesma expressão: “pros heautou”, significando o sentido “para sua casa”.

De acordo com Lucas 4.31,38, a casa de Pedro ficava em Cafarnaum, cidade da Galiléia que ficava a aproximadamente 150km de Jerusalém. De acordo com Gênesis 31.23, uma jornada de um dia equivale de 30 a 40km, de modo que Pedro levaria no mínimo (no mínimo mesmo!) 3 dias para ir a sua casa e mais 3 dias para voltar.

No entanto, Lucas 24.13 diz que no mesmo dia em que Pedro voltou a sua casa, dois discípulos viram Jesus no caminho de Jerusalém para Emaus (cuja distancia é de aprox. apenas 15km) e o convidaram para passar a noite com eles, já que “o dia declinava”, ou seja, o sol estava se pondo. Como os judeus tinham duas refeições – o desjejum (ao nascer do sol) e a ceia (ao por do sol), Jesus tomou a ceia com eles. No vers. 31, Lucas afirma que nesse exato instante “abriram os olhos” e reconheceram que era Jesus e que, “na mesma hora”, segundo o vers. 33, foram a Jerusalém – “onde acharam reunidos os onze” – e contaram para eles. Os “onze”, porem, contaram que “o senhor já apareceu a Pedro”.

Aqui fica a pergunta:

Sendo que a distancia entre Jerusalém e Cafarnaum é de aprox. 150km, como Pedro poderia ir e voltar, de Jerusalém a Cafarnaum – ou seja, percorrer uns 300km – e estar junto na mesma noite com os demais discípulos em Jerusalém? (sem contar com os assaltos, que eram freqüentes principalmente pela noite). 

A resposta para essa contradição reside não apenas nos (freqüentes) desleixos geográficos perpetrados por Lucas, mas principalmente pela forma como ele usa, recorta e manipula o material de suas fontes.

Para ilustrar isso, começo com uma simples pergunta: por que Lucas se limita a dizer somente que Jesus havia aparecido a Pedro, no vers. 34, mas não narra como se deu tal aparição?

Por incrível que pareça, tal resposta também é simples, porém interessante: Lucas narra, sim, tal aparição, mas... no começo (não no final!) de seu evangelho. De acordo com Raymond Brown, Joseph Fitzmyer e J. P. Meier (1998, p. 457), o relato da chamada de Pedro, narrada em Lucas 5.1-11 constitui um relato de cristofania pos-ressurreição, que Lucas tratou de retroceder ao inicio do ministério publico de Jesus.

Segundo esses especialistas, o relato de João 21 e de Lucas 5.1-11 constituem duas versões diferentes para a mesma historia, pelas seguintes razoes:

1 – Pedro é o personagem principal (Lc 5.2-5; Jo 21.2-5);

2 – Com um conhecimento aparentemente sobrenatural, Jesus orienta Pedro e seus companheiros a lançarem suas redes na água mais uma vez, com a promessa de que desta vez terão sucesso (Lc 5.4; Jo 21.6);

3 – Pedro e os companheiros confiam e obedecem à ordem de Jesus, recolhendo como resultado uma grande quantidade de peixe (Lc 5.6; Jo 21.6);

4 – O efeito da grande pesca sobre a rede é mencionado. Lucas cita o risco da rede se romper (Lc 5.6), enquanto João menciona que a rede não se rompeu (Jo 21.11): de fato, em ambos os relatos a rede não rompe, e o resultado é uma pesca farta.

5 – Pedro é o único identificado que reage de forma dramática ao evento miraculoso (Lc 5.8; Jo 21.7): em Lucas, Pedro se proclama um pecador e pede a Jesus para afastar-se dele; em João, Pedro se atira na água e nada ate Jesus na margem.

6 – Em ambas as narrativas, o narrador que descreve na terceira pessoa menciona Jesus apenas como “Jesus”, enquanto Pedro se dirige a Jesus como “senhor” (Lc 5.8; Jo 21.15-17).  

7 – Os outros pescadores tomam parte na pesca (Lc 5.6-7; Jo 21.6,8), mas não dizem nada (com exceção do fantasioso Discípulo Amado de João) quando o milagre começa.

8 – Ao final das duas historias, Jesus, direta ou indiretamente, faz um apelo a Pedro para segui-lo, com o verbo akoloutheo (“seguir”) ocorrendo em Lucas 5.11 e em Jo 21.19.

9 – Ambas as idéias guardam dois significados simbólicos: 1) o futuro trabalho missionário e o resultante sucesso de Pedro e dos outros discípulos; 2) a idéia de que, sem Jesus, ou seja, sozinhos, estarão fadados ao fracasso. Somente com a ajuda e orientação de Jesus, conseguirão êxito.

10 – As mesmas palavras gregas são usadas para muitos verbos e substantivos em ambas narrativas (Meier cita pelo menos 11 palavras).

11 – Em ambas as historias, no momento em que reage ante a pesca milagrosa, Pedro é mencionado como “Simão Pedro” (Lc 5.8; Jo 21.7), sendo esta a única vez em que Lucas usa o nome duplo em seu evangelho, ao passo que João o usa de forma regular.

De fato, como essa aparição se deu na Galiléia (segundo João 21, no mar de Tiberiades), era necessário que Lucas fizesse Pedro voltar para a Galiléia, para ter sua “cristofania”, antes que retornasse para o Monte das Oliveiras, 1km de Jerusalém, para ver Jesus subir ao céu.

Por isso, Meier (1998, p. 459) afirma que:  

“Examinando a concordância geral no conteúdo básico das duas narrativas e também algumas das concordâncias surpreendentes em pequenos detalhes, para mim esta claro que temos aqui duas versões alternativas da mesma historia, e não duas historias diferentes com semelhanças superficiais” .

Meier também cita outros pesquisadores que são da opinião de que a versão de João é a mais original, e que Lucas se apoderou de uma cristofania para narrar a chamada de Pedro (note que é somente Lucas que narra tal episodio, ao passo que sua principal fonte, o Evangelho de Marcos, traz um relato muito mais simples sobre o chamado de Pedro, omitindo por completo essa pesca milagrosa), e afirma que: 

“A igreja primitiva tinha motivos mais do que suficientes para retrojetar material pos-pascal para o ministério publico de Jesus” (MEIER, 1998, p. 461). 


Meier também afirma que podemos estar diante da alegada “aparição de Jesus a Pedro”, mencionada em 1Co 15.3-5 e Lucas 24.34.

Essa idéia é realçada quando consideramos que os discípulos voltaram a Galiléia logo após a morte de Jesus. De acordo com João, antes mesmo que Jesus aparecesse para qualquer um deles, “os discípulos voltaram para casa”, isto é, para a Galiléia (Jo 20.2-10). O anjo no sepulcro que manda os discípulos voltarem para a Galiléia – ou seja, o lar dos discípulos – serve apenas para atenuar o fato de que o desapontamento naturalmente levariam os discípulos a abandonarem o movimento de Jesus, voltarem aos seus velhos lares e aos seus antigos afazeres. Por isso, a ordem o anjo é bastante suspeita.

De acordo com Jesus: “quem põe a mão no arado e olha para traz não é digno do reino de Deus”. Ou seja, se os discípulos voltam aos seus antigos afazeres, é porque abandonaram por completo o cristianismo (talvez seja por isso que Lucas optou por retrojetar a aparição a Pedro ao ministério terreno de Jesus – para salvar a cara de Pedro!).

Portanto, era por isso que era tão importante para Lucas dizer que Pedro havia “voltado para casa” – para preparar lugar para sua cristofania. Mas, desleixadamente, mudou de idéia (como João faz em 4.2, no caso do “batismo de Jesus”...), deixando de narra-la para apenas “cita-la rapidamente”, e fezendo as lambanças descritas acima.

Mais uma vez fica demonstrada não somente a ignorância de Lucas quanto a geografia da Palestina, mas também, e principalmente, a forma tendenciosa e manipuladora com que se utiliza de suas fontes.


Fontes

- MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Vol. II, livro III.

- Site Blueletter.